Tarde santa II.


Andei pelos arredores da construção da capela que padre Rosalvino começou a três semanas santas atrás, e fiquei muito desanimada por ele. Coitado! Não vi futuro no empreendimento. Mas o padroeiro também não ajuda em nada: São Tomás de Aquino! Isso não é nome de santo que povo gosta! Inteligente demais. Povo gosta é de simplicidade. Fosse esse tal um lavrador que viu os filhos serem massacrados em nome da fé, e a capelinha já estaria funcionando há muito tempo. Com direito a sino tinindo de tão prateado e tudo. Mas ninguém quer saber de santo que escreveu suma teológica.
(MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.39).



Créditos: curt walters e sacramentinos.com

A primavera I.

Quando setembro alvoreceu e demonstrou seu poder de florir a terra árida, quando o alarido das cigarras anunciava a despudorada busca pelo amor, coloquei a grinalda na cabeça e adentrei a matriz de Santana dos Cristais. MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.26).

Créditos:  fineartamerica  artistinternational

Tarde santa I.

A tarde ardia como as tardes de Adélia. Divinópolis é cidade onde maio não tem fim. Queria ter nascido lá. Infeliz de mim, feliz de Adélia . Sempre fala com devotadas palavras sobre a beleza da mãe. Minha mãe também era bonita, mas eu não tenho palavras que realcem o fato. Não sou poeta. A mim não coube o ofício de ser artesã de palavras. O máximo que consegui nesse mundo foi escrever uma redação que alcançou o terceiro lugar no colegial.  Era quase toda minha. Apenas dei uma espichada de olho num texto que minha irmã transcrevera de um pequeno informativo vindo da capital. Não sei se foi cópia. A professora encantou-se a ponto de marejar de lágrimas os olhos na leitura final, quando em público recebi a medalha de bronze. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.40).


Creditos: joserosariodiarias

Antiguidades I.

Em mim há uma infinidade de recortes, mas não sou arte que deve ser apreciada com pressa, sou feita de detalhes antigos que carecem de contextualizações. Quem quiser que venha, mas antes se informe. Sou igual aos museus. Tenho horário para fechar. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.66).

SIMPLICIDADE I.

Sou do tempo em que tristeza era curada com um pedaço de goiabada com queijo, mas hoje não. Qualquer tristezinha  já tem de ser medicada com comprimidos que entorpecem a alma. E já disse par a Liana não dar ouvidos ao médico que ela arrumou para curar a sua depressão. Coisa mais esquisita.  Só porque  está um pouco ansiosa, fato normalíssimo na vida humana, já foi diagnosticada como deprimida. Tristeza agora tem outro nome?
Isso é falta do que fazer. Se lavasse mais roupa por dia, certamente estaria bem cansada para dormir a noite toda, mas não. São três ou quatro empregadas. Passa o dia todo sem colocar a mão na louça suja. Deixa pra lá! (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.33).

💕

Para estar junto não é preciso estar perto, e sim do lado de dentro".
 (Leonardo da Vinci)

A donzela e a luz roubada I.

Cada doido com sua mania. Eu tenho as minhas, mas não conto. Tenho medo de me sentir frágil por me expor. Contar as fraquezas é uma forma de virar vitima. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.15).

Fotografia IV.

Não gosto de desvendar mistérios. Prefiro conviver com eles. Saborear o não saber, o oculto, é prazer que não mensuro. Esbarrar no silêncio das coisas sem forjar palavras é um jeito que tenho de viver imaginando. Quando não sei, imagino, e imaginar é ver o mundo do avesso. Desvendar é o mesmo que expor à banalidade.  Há mais beleza na pergunta que na resposta. É a força contundente das estéticas inacabadas. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p. 72).

Da vida, alheia IV.

Panelas areadas espantam o diabo. Essa teologia é minha. Os cardeais não sabem disso porque não frequentam cozinhas nem tampouco areiam panelas. Eu sempre achei que padre corre o risco de não saber muita coisa sobre Deus. Ou, se sabem, desaprenderam com o tempo. Costumam ficar muito teóricos, e Deus não é teórico.  Deus é prático demais. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.144).

Da vida, alheia III.

Sou má. Reconheço isso nos meus desejos. Não posso negar que sempre tive vontade de ter fusca velho só pra deixar bater em motorista imprudente. Sonhos mesquinhos. Eu os tenho a toda hora.
(MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.146).

A sacerdotisa V.

A loucura da cruz me faz ser louca também. É verdade. Sou louca de amor. Este amor me coloca em caminho único, o perdão. Não tenho como expulsar Norberto do banquete. Não tenho argumentos para privá-lo de meu colo acolhedor, mesmo que ele esteja torto de tanto pecado. Negarei a ele o que Cristo nunca me nega? Não posso! Seria o mesmo que negar a redenção que Dele recebi. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.166, 167).





Foto Ilustrativa de   melanie jean juneau

Da vida,alheia II.

Eu quis voltar a cultivar gerânios. Achei melhor acabar com as margaridas amarelas. São aborrecidas demais. Cuidados e mais cuidados, e nada das ordinárias florescerem. Mandei o Julião arrancar tudo, e aos gritos, para que elas percebessem minha fúria. Gerânios são mais gratuitos. Uma aguada de manhã e a florada já está garantida.
Conclui que os homens são semelhantes às margaridas ou aos gerânios. Venâncio é uma margarida amarela, mas desbotada. Reguei, reguei, cuidei, adubei, e nada daquele ingrato me pedir em casamento. Arranquei com raiz e tudo. Que morra seco e sem água, e que não sirva nem pra enfeitar defunto. Já o Zé Arlindo é um gerânio que vim a conhecer no final de feira. É quase um resto, mas não importa. Esse vaso de flor eu não deixo quebrar. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.143,144).

🙌 💓



A perfeição de  Deus em nossa vida acontece pelas nossas esperas, e não pela urgência do nosso coração.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alma em desordem VI.

O que sei que há em mim uma praça abandonada, preparada para uma festa que nunca aconteceu. A fita estendida ainda pende desejosa de corte. Vez em quando o vento agita o ambiente. Corta o horizonte escurecido pela tristeza e ilumina o espaço com fragmentos de alegrias que aos belos tempos da construção pertencem. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p. 183).









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Amor inacabado IV.

São linhas que não vejo; são agulhas que não enxergo, mas o bordado é real. Há sempre uma virtude que precisa ser bordada na vida da gente. Não me descuido dessa arte.  É dom de mulher que aprecio e ensino. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.161).

A compulsiva V.

É tão sedutor o aroma de um produto novo! Boas lojas estão sempre perfumadas. Na Alameda  Félix 
Albuquerque está localizada a bonita loja de enxovais de Marieta Clemência. É tradicionalíssima. Trabalha com o que há de mais sofisticado em artigos de cama, mesa e banho. Sempre que posso dou uma espichadinha até lá. Corro os olhos em tudo e sempre saio com alguma coisinha. O interessante é que outro dia comentei com a mocinha atendente que a loja estava perfumadíssima, e ela  já se antecipou, dizendo-me:
- Se a senhora quiser, poderá comprar o cheiro da loja! - Dito e feito. Comprei cinco frascos do tal perfume. De vez em quando borrifo a essência no meu quarto e durmo com a doce sensação de que faço parte da vitrine da loja, deitada naquela cama suntuosa, envolvida nos lençóis brancos de oitocentos fios. Um luxo. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.23).

Fotografia III.

Ontem descobri um broto de jabuticabeira bem perto do muro que faz divisa com a horta do  Bernardino Rodrigues. A principio pensei que fosse uma plantinha sem-vergonha. Só depois percebi seu valor manifestado. Demorou pra revelar o que era. Uma jabuticabeira é quase uma mina de ouro. Jabuticabeiras pertencem à estirpe das realidades religiosas. Não sei por que penso assim, mas sempre reconheci nelas uma beleza sacra.
Recordo-me com saudade. O tempo das chuvas, a proximidade do Natal e o ritual de vê-las floridas. em pouco tempo, os frutos. A  vida generosa, a multiplicação da alegria e uma voz segredando aos meus ouvidos de menina maravilhada: "Retira as sandálias dos teus pés. pois este solo em que tu pisas é santo!". (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.71).

Alma em desordem IV.

Desde então paira sobre mim uma nuvem espessa que nunca mais permitiu a passagem do sol. Estado de noite  que na alma não termina. Conversão que me levou ao absurdo do abismo e me entregou nos braços da descrença e da desolação. Comigo foi diferente. O meu Abraão não mudou de ideia. Desceu a lâmina sobre minhas esperanças e não teve misericórdia de mim. Deus não gritou antes, ou foi ele que não quis obedecer à ordem superior, não sei. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.182,183).

🌻🌻

Insisti muito no cultivo de girassóis, mas não tenho cacife para realizar meu sonho, não sou russa, não sou Sofia Loren, e por isso terei que me contentar em correr no meio de um canteiro de margaridinhas. Sou apenas a atendente da Perfumaria Glória, a filial. Sou mulher miúda, de passos estreitos, solitária, atrevida, mas contida na capacidade de esperar por milagres. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.115). 

Pensamento do dia...

Tenho aprendido com o tempo, que a felicidade vibra na frequência das coisas simples. Que o que amacia a vida, acende o riso, convida a alma a brincar, são essas imensas coisas pequeninas, bordadas com fios de luz no  tecido áspero do cotidiano. ( Ana Jácomo)

A mulher e o tempo IV.

A tarde era fria demais para aquela época do ano. O inverno já havia se despedido, mas uma semana  de chuvas intensas foi suficiente para que as temperaturas voltassem a despencar. Eu estava mergulhada em motivos tristes. Olavo resolvera ficar mais uma semana em Santo Antônio do Pinhal, mesmo sabendo  que esse seria o tempo que eu dispunha para estar com ele. Sugeri ir ao seu encontro, mas ele disse que não poderia me receber por lá. Justificou-se com palavras confusas e desconexas. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.121).

A convertida III.

Eu, como nunca fui vista. Bobes na cabeça, chinelos franciscanos e baldes nas mãos. Naquele instante, no mesmo em que eu me imaginava assim, ocorreu-me a certeza da loucura. Procuraria o doutor Lamartine  na primeira hora de atendimento da segunda-feira. Algo muito sério deveria estar acontecendo comigo. Recordei-me da loucura dos santos. Gente que se apaixonou pelos pobres e que nunca mais conseguiu reassumir a vida antiga de luxos e prazeres. Mas eu não queria isso pra mim. Uma coisa é ter o coração bom,  sensível às necessidades  dos mais pobres. Outra coisa é abdicar do conforto que se tem para ir arear panelas de mendigo. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.31).

Amor que amansa III.

O cochicho me surpreendeu. O gesto recordava-me os amantes do cinema. O riso cúmplice, os olhares indecisos, seguros de que poderiam expressar os limites sem o risco da condição de vítima.
A vida segredada, a palavra na cavidade do ouvido. O sussurro, a fala particular, coisas que aos românticos pertencem. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.38).

A convertida II.

Queria voltar ao mundo de cotidiano requintado. O café da manhã, sempre acompanhado de uma ou outra amiga do Lions; o almoço pouco calórico; o chá da tarde; a conversa que nos atualizava dos últimos costumes finos... (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.30).

Amor profilático III

Profilático deve ser coisa bonita demais para que a gente possa compreender. Amor de romance, bíblico, fiel. Amor de Oseias, o profeta que, depois de traído, encontrou a traidora sendo negociada numa feira de escravos. O amor profilático o encorajou a comprá-la. Reassumiu como esposa a traidora perdoada e, sem muitas perguntas e respostas, levou de volta para casa aquela que do coração nunca partira. História mais linda neste mundo nunca houve. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.14).


Foto Ilustrativa de    deviantart.com

Alma em desordem V.

Poderia ter sido diferente, mas não foi.  Augurei o manto alvo da santidade até o momento em que minhas preces cansadas desistiram das escadarias imensas de minha vida sem gozo.
Pedi a Deus que desocupasse a minha alma, tal qual o proprietário solicita o despejo do inquilino inadimplente. Ele que vá se abrigar nos Carmelos do mundo, nos eremitérios mais longínquos, já que nunca quis fazer graça na minha vida. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.179).
Não se cobre tanto.
Às vezes é importante não se importar.

A sacerdotisa IV.

Este lençol que alvejo é sacramento do amor que sinto por Norberto. Esta lida constante de quarar o que está amarelado é imperativo de minha condição de mulher. Voz que ouço em tonalidades diminutas, tristonhas, ordenando-me: "Clareia o mundo, retira a poeira das almas e endireita os caminhos humanos!". (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.162)

Amor inacabado IV.

Aquele infeliz sempre me olhou com olhares "confundentes". Jamais pude saber se me queria ou não. Nunca utilizou a clareza como regra, como se a vida tivesse que passar obrigatoriamente pelo filtro da dúvida.
De vez em quando ele chegava. De vez em quando ele partia. Intermitentes processos de deslocamento que deixavam meu coração em sobressaltos de expectativa. 
(MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.159).

A compulsiva IV.

Conheci Lucilda na primeira escola. Sempre foi uma mulher sem graça. Nos tempos de menina quando todas nós ostentávamos imensos laços de fitas nos cabelos, ela já se apresentava com aqueles cabelinhos mirrados e sem brilho. Os óculos pareciam fundos de garrafa. Para agravar ainda mais o quadro, era proprietária de uma merendeira com formato de elefante. Tudo aquilo lhe dava um aspecto terrível. Parecia um cachorro que havia caído da mudança. Ninguém gostava de dividir absolutamente nada com ela. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres cheias de graça, 2015, p.20).

Feliz Ano Novo!✨

Em 2020, brilhe do seu jeito.

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ORFANDADES - O destino das ausências.

É um livro que tem uma narrativa envolvente, Pe. Fábio com seu olhar poético sobre as ausências humanas, conta histórias de personagens e lugares atingidos pelos misteriosos territórios da solidão e do desamparo existencial.
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